O “federalismo de confronto” adotado por Jair Bolsonaro deu resultados ao longo da pandemia de covid-19 e é a mais nova estratégia do presidente para traçar seu projeto de reeleição em 2022. O protagonismo que os governadores assumiram no início da onda de contaminação no país, em março lhes rendeu um boom de popularidade, que refluiu.
Em fevereiro, quando o coronavírus ainda não era uma realidade para os brasileiros, os governadores eram avaliados como ótimos e bons por 23% da população, de acordo com pesquisa XP/Ipespe. Dois meses depois, a popularidade já era de 44%. Na última sondagem, de agosto, era de 33%.
O capital político acumulado pelos gestores estaduais, que se uniram de forma inédita no país para tentar driblar o desgoverno nacional no combate à covid-19, foi se queimando gradualmente com a decisão política de Bolsonaro de elegê-los como inimigos primordiais.
“Bolsonaro usou o federalismo como tabuleiro de xadrez para construir sua campanha pela reeleição de 2022. Usando todo o poder presidencial, causou, de fato, desgastes na imagem dos governadores, de forma geral”, atesta o cientista político Fernando Abrucio, professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
A conjuntura econômica do Brasil e a impossibilidade de sustentar um isolamento social sem apoio da União foi a causa central do desgaste do governadores, sustentam especialistas.
A nova estratégia de confronto com os governos estaduais coincide com o período em que Bolsonaro instituiu uma trégua aos ataques ao Congresso e a Supremo Tribunal Federal, também um cálculo político para afastar riscos de impeachment e arrefecer o duelo institucional que corroía sua popularidade, sobretudo nos segmentos de renda mais altos da população.
“Bolsonaro fez o acordo de paz com o STF, se juntou ao Centrão e escolheu os governadores como inimigos. Essa é a trilha para 2022. Os governadores não seguraram a peteca, e não teriam como, neste cenário político”, acrescenta Abrucio, que finaliza um paper acadêmico sobre federalismo e covid-19 nas Américas.
Para o sociólogo e cientista político Antonio Lavareda, é preciso analisar a competição de imagem entre Bolsonaro e os governadores sob três dimensões: sanitária, econômica e policial-judicial. Na dimensão sanitária, pontua, os governadores acumulam saldo positivo, a despeito da queda de popularidade global ao longo dos últimos meses.
O cientista salienta que a avaliação geral positiva de governadores em agosto (33% de ótimo e bom) ainda é 10 pontos percentuais mais alta do que a popularidade que tinham em fevereiro deste ano, ou seja, a liderança que assumiram nas ações e políticas públicas locais para conter o avanço da covid-19 lhes renderam algum capital.
Ele observa, ainda, que a avaliação específica sobre a pandemia é muito mais benéfica para os governadores do que para Bolsonaro. Em agosto, 38% dos entrevistados na sondagem da XP consideraram a atuação dos governadores na pandemia boa ou ótima; para 33%, foi regular; e 26% a classificam de ruim ou péssima. Já a atuação de Bolsonaro é péssima ou ruim para 50%; regular para 22% e péssima para 24%. “No quesito enfrentamento pandemia, a avaliação de Bolsonaro é bem inferior”, frisa Lavareda.
Seria, portanto, na dimensão econômica, sustenta ele, que os governadores perderam. “Aqui podemos fazer análise dos fatos correntes. Os governadores foram os responsáveis por fechar escolas e comércios, e limitar, de maneira geral, as atividades econômicas. Eles que fizeram lock down, isolamento social, e agora, o relaxamento [para a retomada].
O resto é perfumaria. Já o presidente tem em mãos auxilio emergencial e apoio a empresas. Temos 40% da população recebendo auxilio. É inegável que nessa dimensão o presidente tenha oferecido muito mais que os governadores. Bolsonaro deu os benefícios, e os governadores alguns sacrifícios”, explica Lavareda. Mesmo que o valor do auxílio emergencial tenha sido elevado por atuação do Congresso, os louros ficaram para Bolsonaro.
“Bolsonaro cresce porque teoricamente vira o autor do coronavoucher. Os governadores caem porque medidas que tomaram tiveram impacto na mesa do brasileiro”, pontua Marcelo Vitorino, especialista em marketing político e digital e professor da ESPM, corroborando a visão de que a economia é a causa central do desgaste dos gestores estaduais.
Lavareda destaca ainda que as compras emergenciais, com dispensa de licitações durante a pandemia, colocaram os governadores em situação delicada, que ele chama de dimensão policial-judicial. O Ministério da Saúde, como se esquivou de liderar o processo de combate ao coronavírus, foi poupado de críticas e questionamentos que inevitavelmente poderiam ocorrer num momento de calamidade pública, diz ele.
Abrucio cita que países federativos, como Alemanha, Austrália e Canadá, por exemplo, se destacaram pelo pacto do líder nacional com seus governadores. No Brasil, ele observa, o governo federal optou por “reduzir a coordenação federativa do SUS, que era uma vantagem comparativa do Brasil em relação inclusive aos países desenvolvidos”.
“A queda do Mandetta [ex-ministro da Saúde] foi isso, a desestruturação federativa no sistema de saúde. É difícil dizer se foi proposital ou não. Caiu no colo dos governadores fazerem compras de coisas que eram vendidas como pirataria no mundo. Na hora em que o governo federal opta por descentralizar todo o processo de compras, e joga no colo de governadores essa responsabilidade, claro que aumentou a chance de erros e problemas. E isso pegou fortemente alguns governos estaduais num país em que a tradição da administração pública já não é tão republicana”, argumenta.
Renato Dorgan, sócio proprietário do Instituto Travessia, especialista em pesquisas qualitativas e marketing político, diz que a omissão de Bolsonaro no início da pandemia assustou a classe média, que aprovou as atitudes dos governadores, como fechamento do comércio e das escolas. Ao longo do tempo, o presidente foi hábil em construir a narrativa de que os governadores estavam quebrando o país e seriam os culpados pelo desemprego. Nas sondagens qualitativas e bolsonaristas, diz, “os governadores viraram os vilões da história”. “Não é mais a esquerda, nem Congresso, nem o STF.”
FONTE: Valor Econômico | Por Malu Delgado | Foto: Divulgação/Cultura