Rota do dinheiro: de onde saiu e para onde foi o investidor na coronacrise

O Valor Investe cruzou dados divulgados pela Anbima, B3, Banco Central, Tesouro, Morningstar e conversou com especialistas para entender o comportamento do investidor pessoa física em março e abril

A maior crise desde a Grande Depressão certamente não deixaria de influenciar as decisões das pessoas sobre o que fazer com seu dinheiro. Era de se esperar que uma hecatombe dessa mexeria com os fluxos financeiros da poupança e das aplicações financeiras e provocasse uma realocação dos investimentos das pessoas.

Mas para onde foi o dinheiro? Infelizmente, não existem dados consolidados que mostrem exatamente como os pequenos investidores se movimentaram nos últimos meses. Mas o Valor Investe fez um esforço para mapear com diversas fontes o fluxo do dinheiro das pessoas físicas: para onde foi e de onde saiu.

De um lado, vimos que o investidor não fugiu da bolsa, ao contrário do que muitos esperavam, e até aplicou mais dinheiro em ações. Por outro, houve uma grande fuga dos fundos de investimentos de renda fixa. Em apenas quatro meses, a classe teve um resgate líquido de R$ 120 bilhões (a cifra não considera apenas aplicações de pessoa físicas), sendo que R$ 100 bilhões só em março e abril, segundo dados da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais).

A aparente contradição é essa. Ao mesmo tempo em que vimos o investidor brasileiro se arriscando mais em ações, fundos de ações e ETFs, aproveitando oportunidades com a queda dos papéis, também vimos ele buscando conforto em CDBs (Certificado de Depósito Bancário) de grandes bancos, considerados mais seguros, apesar de menos rentáveis, e aplicando em ouro e fundos cambiais, para surfar a onda de valorização e proteger a carteira.

 

Soa estranho, mas o que observamos foi justamente uma corrida para as duas pontas: uns saindo do “meio” para ativos mais arriscados e outros partindo do centro para produtos menos arriscados ainda. Prova disso é termos simultaneamente um recorde de CPFs na B3 e captação líquida de R$ 44 bilhões de fundos de ações, e noticiarmos que a poupança (sim, a caderneta, condenada por todos) teve sua maior captação líquida em abril, de R$ 30 bilhões.

 

Para fazer as análises a seguir, cruzamos dados do Tesouro Direto, da B3, da Anbima, do Banco Central e da plataforma de fundos Morningstar, além de entrevistas com agentes do mercado.

O investidor enlouqueceu?

O que está acontecendo com o investidor? Como ele pode estar apostando em produtos tão opostos, como bolsa e poupança? Qual a razão da forte aversão a fundos tão tradicionais como os DI?

“A crise atual é diferente das outras pelas quais o Brasil já passou quando se fala em investimento”, afirma Guilherme Leal, sócio e diretor de distribuição da XP. Ele explica que, no passado, sempre que havia turbulência no mercado, as ações caíam, a incerteza se estabelecia, e o investidor corria para a renda fixa (CDI), que pagava dois dígitos de retorno ao ano.

 

“Isso aconteceu na época da eleição do Lula [ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva], na crise do subprime de 2008, no impeachment da Dilma [ex-presidente Dilma Rousseff], no Joesley Day [polêmica envolvendo ex-presidente Michel Temer], na greve dos caminhoneiros e por aí vai. Agora, com juros a 3% ao ano, o investidor começa a ter desafios para encontrar o porto seguro que antes era a renda fixa”, resume Leal.

Para entender tudo isso, vamos aos fatos.

Para onde foi o dinheiro

Na ponta de captação, não há dúvida de que a bolsa e a poupança foram as grandes estrelas dos investimentos na pandemia. Nos últimos dois meses, os investidores pessoa física foram responsáveis pela entrada líquida de quase R$ 25 bilhões no mercado secundário da B3. Ou seja, as compras de ações por investidores individuais superaram as vendas neste montante. Além disso, o número de CPFs cadastrados na bolsa bateu recorde em abril: 2,385 milhões, 42% maior do que em dezembro de 2019.

Mas não foram todos os papéis que interessaram ao pequeno investidor. “Vemos que vigora a seletividade, a busca por ações de companhias que são mais resistentes, com maior previsibilidade de geração de caixa e baixo nível de endividamento, como as de bancos.

Segundo o Big Data SmartBrain [estudo mensal sobre a carteira de investimento], Vale e Petrobras continuaram sendo procuradas”, explica Cassio Bariani, presidente e fundador da SmartBrain, que tem uma ferramenta que consolida carteiras de investidores assessorados por agentes autônomos e consultores.

 

Em março, Bariani relata que houve uma forte procura por papéis de bancos. O Itaú (ITUB4), que ocupava a nona posição passou para a quinta, e entrou na lista dos mais procurados a Itaúsa (ITSA4), holding que controla o banco. Os grandes investidores também adicionaram ações do Banco do Brasil (BBAS3) e do Bradesco (BBDC4) às suas carteiras.

Outro destaque visto pela SmartBrain foi a busca pelo ETF BOVA11, que replica o Ibovespa. O ETF é um fundo de investimento que acompanha passivamente (sem tentar superá-lo) um índice do mercado. Em 2020 até março as negociações com ETFs somam R$ 127,5 bilhões, sendo que 81% do volume vieram apenas de dois produtos, o BOVA11 e o BOVV11, ambos que espelham o Ibovespa.

O interesse pela bolsa também se manifestou na indústria de fundos de investimento. O saldo negativo do ano, de R$ 69,6 bilhões de resgates líquidos de todos os fundos no primeiro quadrimestre, só não foi maior porque os fundos de ações captaram R$ 44,3 bilhões no período.
No ranking dos ativos preferidos dos investidores da Fliper, outro consolidador de investimentos, o fundo de ações Bogari Value FIA reinou em primeiro lugar em maio, espaço ocupado pelo título conservador Tesouro Selic há dois meses.

Top Aplicações dos investidores da Fliper

Ranking 01/03/2020 06/05/2020
1 Tesouro Selic Bogari Value FIA
2 Tesouro IPCA+ 2035 Tesouro Selic
3 Ação da Itaúsa (ITSA4) Ação da Itaúsa (ITSA4)
4 Alaska Black FIA Tesouro IPCA+ 2035
5 CDB DI Ação da Petrobras (PETR4)

Nem os fundos imobiliários (FIIs), uma das principais apostas do ano passado e menos voláteis do que ações, atraíram tanta atenção. Em março, houve aumento de 4% no número de investidores em relação a fevereiro (agora são 792 mil investidores), mas o patrimônio líquido cresceu menos de 1%, para R$ 95,1 bilhões em março (os dados de abril ainda não saíram). Em março, a desvalorização do IFIX, índice que representa o segmento de FIIs, foi equivalente à metade da perda do Ibovespa, de 16%.

Vale ainda destacar que houve uma procura maior por fundos cambiais e produtos ligados ao ouro nos últimos meses, tidos como ativos de proteção, e que foi acompanhada (e alimentada) pela forte valorização do dólar e da commodity. Em 2020, a moeda americana acumula alta de 45% em relação ao real, enquanto o ouro avança 56%. A Fliper constatou um aumento de 38% no volume de aplicações ligadas ao ouro na carteira de seus clientes.

Volume captado com emissão de CDBs pelos bancos

Mês Volume (em R$ bilhões)
dez/19 622,1
jan/20 523,3
fev/20 454,1
mar/20 677,3
Variação entre fevereiro e março 2020 49%

De onde saiu o dinheiro

Se até agora nós contamos para onde foi o dinheiro, por outro, na ponta de saídas, os investidores resgataram em massa seus fundos de renda fixa, em especial o dinheiro que tinham em grandes bancos. Dos resgates registrados pela Anbima, R$ 123 bilhões foram sacados de fundos classificados como “Renda Fixa Duração Baixa Grau de Investimento”.

Apesar do nome dizer pouca coisa para a maioria dos mortais, essa classe é composta por fundos de baixo risco, compostos por ativos que seguem a Selic (ou CDI) e que tenham no mínimo 80% da carteira em dois papéis: títulos públicos federais ou ativos com baixo risco de crédito do mercado doméstico ou externo. São os populares fundos DI, investimentos muito comuns em grandes bancos.

Dentre os fundos de renda fixa, outra classe viu o dinheiro evaporar, e esse fluxo tem ligação a fuga dos DIs, foi a de fundos de crédito privado. Segundo dados da Anbima, nos três primeiros meses do ano, o segmento de fundos de crédito privado teve resgate líquido de R$ 36,6 bilhões, valor que só não foi mais alto porque, em março, um fundo exclusivo com recursos de um banco comercial (não identificado) captou R$ 7 bilhões.

 

E o motivo para os saques das duas subcategorias dentro da classe de renda fixa foi a surpresa negativa com a performance.

 

Em março, os fundos de crédito privado perderam, em média, 1,54%, sendo que 80% das carteiras que compõem a categoria deram prejuízo. Na esteira, os DIs, super conservadores, que tinham papéis de crédito privado, também tiveram rentabilidade negativa, algo que não se via no Brasil há décadas.

“Os investidores questionaram mais a performance dos fundos DI do que a queda de ações. O investidor olha para a bolsa e espera que a queda aconteça. Mas não espera que o fundo de liquidez D+0 caia 2%”, diz Guilherme Assis, sócio e cofundador do consolidador de investimentos Gorila.

Assis conta que viu dois principais movimentos em seus dados: um aumento da parcela de CDBs de bancos e a recomposição da fatia da carteira aplicada em bolsa, que diminuiu em relação ao patrimônio total porque os ativos despencaram em março. “Não vimos saída de bolsa, pelo contrário, vimos pessoas aplicando mais em bolsa. Também houve captação positiva em alguns fundos que caíram bastante”, explica o executivo.

Ajudou nesse processo o fato de que muitas gestoras tradicionais de investimentos, como Verde, Kapitalo, JGP, Velt, Atmos, e até mesmo a Dynamo, reabriram seus fundos para captação.

Com relação aos títulos públicos, apesar de os resgates no Tesouro Direto terem superado os aportes pelo quinto mês seguido em março, as novas aplicações em títulos foram as maiores em um ano (R$ 3,02 bilhões), assim como os saques (R$ 3,80 bilhões). Isso significa que o investidor andou se mexendo mais do que o normal na carteira. O título mais demandado pelos investidores foi o indexado à Selic (Tesouro Selic), cuja participação nas vendas atingiu 47,2%.

 

“O que temos notado é um fluxo de dinheiro da pessoa física que foi para renda variável, especialmente ações e fundos de ações, e outro fluxo que foi sim para renda fixa, mas especialmente para caixa. O investidor saiu de produtos mais alavancados para manter dinheiro em caixa, seja para pagar contas e enfrentar a pandemia, seja para usar o recurso para comprar mais renda variável”, explica Cassio Bariani, presidente e fundado da SmartBrain.

Nesse movimento de busca por “caixa”, e sem os riscos de sacudidas como de outros produtos, a XP relata ter notado aumento da procura nos últimos dois meses por fundos que tenham apenas títulos Tesouro Selic (antiga LFT) na composição, para servir como reserva de liquidez.

Na Órama, o fundo que carrega apenas Tesouro Selic na carteira, e que tem taxa zero, viu seu patrimônio crescer 70% entre o Carnaval e o fim de abril. Em produto semelhante do BTG Digital, o aumento do volume foi de 33% no mesmo período.

Razões

Para entender o que está acontecendo com o investidor na pandemia é preciso voltar atrás e observar o que mudou no comportamento da pessoa física nos últimos anos. Os especialistas ouvidos pelo Valor Investe são unânimes em dizer que a explicação para o forte interesse pela bolsa é a busca por maior rentabilidade, já que a taxa básica de juros (Selic) está no menor patamar histórico, 3% ao ano.

Até agosto de 2017, o investidor brasileiro conviveu com uma taxa de juros de dois dígitos. A “sorte” das pessoas é que a crise do coronavírus está gerando deflação e o IPCA, índice oficial de variação de preços, de 12 meses, que acumula alta de 2,4% até abril, deve desacelerar. Caso contrário, já poderíamos ver rendimento real negativo com o CDI desde já (não é impossível que ocorra em breve).

Diante disso, o investidor, que antes contava com 14,25% ao ano sem fazer nada, percebeu que a ‘mamata’ tinha acabado e, se ele quisesse uma rentabilidade maior, teria também que se arriscar mais. Essa foi outra máxima que a indústria de consultoria de investimento repetiu inúmeras vezes nos últimos três anos. E o investidor (aparentemente) entendeu.

Uma evidência disso é que as carteiras não só tiveram um aumento de participação de renda variável – o próprio recorde de investidores na bolsa mostra isso – mas também porque elas estão mais diversificadas. Segundo estudo da plataforma de consolidação de investimentos SmartBrain, em março de 2018, a carteira média do investidor tinha 12,62 ativos, número que saltou para 15,08 ativos em março de 2019 e, para 17,20 ativos em março de 2020. Na crise do subprime, em 2008, eram 4 aplicações em média no portfólio. Vale ressaltar que o levantamento é feito com base nos clientes da SmartBrain, um público mais endinheirado e que conta com ajuda de especialistas em finanças.

Distribuição de investimentos no consolidador Fliper por classe e ativo

 

Tipo de investimentos 01/03/2020 (Em R$ bilhões) 06/05/2020 (Em R$ bilhões) Variação (Em ponto percentual)
Ações 2,30 2,48 8%
RF Pós-fixada 1,28 1,37 7%
Multimercados 1,09 1,10 1%
Fundos Imobiliários 0,64 0,59 -7%
RF Inflação 0,52 0,51 -3%
RF Prefixada 0,22 0,25 16%
Conta Corrente 0,18 0,22 23%
Dólar 0,09 0,18 31%
Ouro 0,025 0,034 38%
TOTAL R$ 6,35 R$ 6,68 5%

Essa sofisticação do investidor, contudo, não veio sozinha. É fruto de uma combinação de fatores, como: a queda dos juros; mais opções de produtos; plataformas de distribuição; mais casas de análise; novos sites especializados, como o Valor Investe; e uma procura maior por parte dos investidores por assessoria especializada e informações sobre investimentos.

“Vimos na crise uma continuidade de um movimento que já era crescente: a busca por assessoria financeira de profissionais independentes, como consultores de investimento, gestores de patrimônio e assessores de investimento. Durante a crise, esses profissionais não perderam clientes e alguns até aumentaram o portfólio e patrimônio sob gestão”, diz Bariani, da SmartBrain.

O investidor, conhecendo mais sobre produtos e sendo lembrado o tempo todo que só correndo mais risco conseguiria retorno maior, começou a migrar aplicações de renda fixa para renda variável.

“Apesar da volatilidade, o volume de resgate que vimos nas classes de ações e multimercados, é pequeno, o que mostra que os investidores foram mais bem orientados, estão recebendo uma assessoria melhor. Os investidores mostraram, aparentemente, um amadurecimento maior do que no passado. Os juros baixos têm, contudo, um peso importante na tomada e decisão”, diz Carlos André, da BB DTVM e vice-presidente da Anbima.

Os fundos multimercados, que estavam, em sua maioria, otimistas com o Brasil, tiveram fortes perdas, assim como os fundos DI que tinham alguma parcela de crédito privado em sua composição, além dos próprios fundos de crédito privado.

A sangria foi resultado de um aumento generalizado do risco no mercado financeiro brasileiro, tanto no risco país, que mexeu com as taxas futuras de juros, quanto no risco corporativo. As empresas que não vendem produtos essenciais, como alimentos e medicamentos, estão paradas desde março. Consequentemente, o risco de calote nos títulos de dívida corporativa também piorou. Esse quadro levou à segunda onda de remarcação de preço de títulos privados em menos de um ano.

Nesse cenário, Guilherme Leal, da XP, conta que o investidor tem destinado a parcela de maior risco de portfólio diretamente para as ações ou fundos de ações. “O investidor hoje pensa que, se for correr risco, melhor renda variável do que multimercado. Alguns gestores de multimercado até performaram bem, mas são poucos. Investidor preferiu mesmo tomar risco via bolsa”, comenta Leal, da XP.

A plataforma viu também uma procura por fundos que investem no exterior. Trazer gestores gringos para seu portfólio de produtos, aliás, é uma aposta recente da XP.

 

Tendência

Para Samyr Castro, fundador do escritório de agentes autônomos InvestSmart, agora, mais do que nunca, o investidor precisa olhar no longo prazo e se acostumar com algum risco, já que uma carteira a 120% do CDI, descontando o imposto de renda, quase empata com inflação.

“Agora que a volatilidade passou, é o momento de se reorganizar financeiramente e diversificar o patrimônio, pensando em dois a quatro anos, para ter uma carteira de rentabilidade boa. O investidor terá que tomar mais risco ou alongar os investimentos”, sugere Castro.

Ao que parece, a euforia e o troca-troca de papéis se acalmou no decorrer de abril e o cenário tende a ser mais tranquilo de maio em diante. Não apenas porque o dinheiro reservado para as manobras acabou para muitos investidores, como a crise está se prolongando mais do que esperado e a taxa de desemprego também cresce a cada dia.

É possível que uma parte desses investidores deixem um dinheiro nas contas correntes e poupanças para sobreviver ao período. Se precisarem de mais dinheiro, são os produtos mais líquidos que devem sofrer resgates, como os fundos DI.

É difícil também, por ora, entender qual a dimensão da crise e como ela vai afetar o mercado de crédito privado, com o Banco Central podendo atuar no segmento, ao mesmo tempo em que a inadimplência pode aparecer. Na renda variável, o Ibovespa conseguiu se reerguer um pouco em abril, com a expectativa de fim da quarentena em breve, mas, em maio, já acumula perda novamente.

Por Naiara Bertão | Valor Investe

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