A Síria, devastada por mais de 13 anos de guerra, enfrenta um futuro incerto. O chefe da Comissão da ONU que investiga o conflito sírio, Paulo Sérgio Pinheiro, compartilha uma visão realista sobre o momento atual do país. Ele reflete sobre a complexidade de prever o que ocorrerá após a queda do regime de Bashar al-Assad, afirmando que as incertezas são muitas. Em uma análise sóbria, o especialista destaca que é impossível fazer previsões sobre o futuro imediato da Síria, dada a situação instável e os múltiplos fatores envolvidos.
Pinheiro explica que, apesar das intensas batalhas e da expectativa de mudanças, a queda de Assad não é uma surpresa. Desde novembro, havia sinais claros de um aumento na atividade dos grupos insurgentes, especialmente o HTS, que intensificou os confrontos com as forças sírias. Além disso, havia uma crescente pressão, tanto interna quanto externa, para que Assad negociasse com esses grupos, o que indicava uma possível virada no conflito.
O cenário da Síria, no entanto, não pode ser comparado diretamente ao que ocorreu na Líbia após a queda de Muammar Gaddafi. Para Pinheiro, a Síria é um estado com características muito diferentes. Enquanto a Líbia era um estado falido, a Síria possui uma estrutura de governo mais funcional, ainda que fragilizada. Além disso, o contexto geopolítico da Síria é mais complexo, sendo um dos principais bastiões de resistência à influência de Israel no Oriente Médio, com forças armadas mais bem equipadas do que a Líbia jamais teve.
A análise também exclui a possibilidade de a Síria seguir o modelo do Afeganistão, governado pelo Talibã, um regime extremista islâmico. Apesar de alguns grupos insurgentes na Síria compartilharem uma ideologia radical semelhante à da Al Qaeda, Pinheiro considera improvável que a Síria se torne um regime de linha fundamentalista. Ele vê a Síria como um caso distinto, onde o conservadorismo islâmico não é tão radical quanto em outros contextos.
Em relação à situação humanitária, Pinheiro destaca que o país vive um dos piores momentos desde o início do conflito. Cerca de 7 milhões de pessoas estão deslocadas internamente, enquanto 90% da população vive abaixo da linha da pobreza. As promessas de ajuda humanitária para 2024 não se concretizaram, com a comunidade internacional apenas cumprindo uma pequena fração do orçamento necessário. As sanções econômicas aplicadas ao regime de Assad, embora voltadas para o governo, afetam principalmente a população mais pobre, agravando ainda mais a crise.
Durante o conflito, a Comissão da ONU documentou uma série de graves violações de direitos humanos, incluindo execuções sumárias, prisões arbitrárias e torturas. A repressão do regime de Assad, em combinação com as ações de grupos insurgentes, resultou em um número impressionante de desaparecimentos e um ciclo de impunidade. Estima-se que cerca de 100 mil pessoas estão desaparecidas, com as famílias recebendo pouca ou nenhuma informação sobre o destino de seus entes queridos.
Pinheiro também se preocupa com as minorias religiosas e étnicas na Síria, que foram severamente afetadas pelo conflito. A Síria, com uma população predominantemente sunita, possui minorias xiitas, alauítas, curdas e cristãs. Durante o governo de Assad, essas minorias, especialmente os cristãos, sentiram-se relativamente protegidas, especialmente após o genocídio do Estado Islâmico. Embora o regime de Assad não garantisse liberdade religiosa total, ele oferecia uma certa estabilidade para essas comunidades em comparação com os horrores perpetrados por grupos extremistas como o Estado Islâmico.
Com a ascensão do HTS e a possibilidade de um novo governo, Pinheiro destaca que, até o momento, não houve sinais de perseguições sistemáticas contra as minorias religiosas. O HTS tem afirmado que não haverá retaliações contra os alauítas, grupo que tem grande participação no governo anterior, nem contra outras crenças. No entanto, Pinheiro alerta que é cedo para fazer previsões sobre a continuidade dessas declarações e sobre como o novo cenário se desenvolverá.
Apesar das promessas de um novo governo inclusivo e tolerante, o passado de repressão e violência deixa cicatrizes profundas na sociedade síria. O medo de represálias e novas perseguições ainda paira sobre as populações mais vulneráveis, que continuam a viver em uma atmosfera de incerteza. No entanto, Pinheiro ressalta que as críticas e manifestações contra o novo regime também têm sido reprimidas, embora sem a violência extrema vista no período do Estado Islâmico.
A missão da ONU na Síria continua a monitorar e documentar os abusos dos direitos humanos, mas Pinheiro reconhece que a tarefa é desafiadora, especialmente em um contexto onde a justiça ainda não foi feita. O sistema de justiça sírio nunca exigiu responsabilidades das autoridades, o que perpetuou um ciclo de impunidade que afeta ainda mais a confiança da população no governo.
Com a queda de Assad e a mudança iminente no equilíbrio de poder, a Síria enfrenta um futuro cheio de riscos e desafios. Pinheiro adverte que ninguém pode prever com certeza o que acontecerá nas próximas semanas, dado o cenário volátil e a presença de forças externas, como o apoio de Israel ao atual governo. O mais prudente, segundo o chefe da comissão da ONU, é acompanhar os eventos com realismo, buscando informações precisas sobre o que está ocorrendo no país.
A Síria, depois de mais de meio século sob o regime da família Assad, está em um ponto crítico de sua história. As lições do passado, as tensões internas e externas, e as questões humanitárias precisam ser analisadas com cautela. O futuro do país dependerá não só da estabilidade política, mas também da capacidade de reconstruir a sociedade e reparar os danos causados pela guerra.
O país continua dividido, com múltiplos interesses em jogo. A reconstrução da Síria exigirá um esforço conjunto, que envolva não apenas os sírios, mas também a comunidade internacional, que tem um papel crucial a desempenhar. Sem a garantia de um processo de paz inclusivo e a promoção dos direitos humanos, o futuro da Síria permanece incerto.
Assim, enquanto os sírios aguardam o que virá após tantos anos de sofrimento, a esperança de um futuro melhor parece distante. No entanto, a batalha pela justiça e pela reconstrução de um país devastado continua sendo uma prioridade para aqueles que ainda acreditam na possibilidade de um novo começo para a Síria.
Fonte: Agência Brasil