Jovem de Paraisópolis cria aplicativo que mapeia empregos na quebrada
Flávia Rodrigues co-criou o aplicativo Quero Trampo para mapear oportunidades de emprego em Paraisópolis
“Favela que me viu nascer, só quem te conhece por dentro pode te entender”. A música cantada em parceria por Racionais MC’s e Exaltasamba poderia ser a trilha de vida da estudante Flávia Rodrigues, 21. A vontade de mudar a comunidade na qual nasceu e cresceu rendeu a Flávia um prêmio que irá levá-la de Paraisópolis, em São Paulo, até o renomado MIT (sigla em inglês para Instituto de Tecnologia de Massachusetts), nos Estados Unidos.
Quero Trampo
O reconhecimento veio após Flávia e seus colegas criarem o Quero Trampo, projeto que surgiu no curso Design em Contextos Sociais, promovido pelo Insper. Em fase de desenvolvimento, o aplicativo está sendo desenvolvido por cinco estudantes de diferentes universidades, liderados por Flávia e pelo bolsista do Insper Davi Dom Bosco Silva. A ideia promete conectar as oportunidades de emprego dos estabelecimentos de Paraisópolis com os moradores do local.
“Eu resolvi criar esse aplicativo porque tem muito comércio e projetos em Paraisópolis. Mas é difícil a gente saber tudo o que acontece, sobre como podemos ajudar e trabalhar. Às vezes, a pessoa procura trabalho que nem gosta e [em um lugar] longe, sendo que tem tudo aqui dentro”, afirma Flávia. Ela explica que o Quero Trampo busca atingir duas vertentes: melhorar a qualidade de vida da população local e aumentar a economia interna da comunidade.
Desemprego
Atualmente, o bairro situado na região do Morumbi conta com 10 mil estabelecimentos. A população é composta por 31% de jovens entre 15 a 29 anos, idades vulneráveis à carência de emprego. Desafiada pelo curso, Flávia e seus amigos realizaram uma pesquisa com os moradores de Paraisópolis para saberem quais problemas eram mais urgentes. Desemprego e lixo lideram o ranking.
De acordo com pesquisa feita pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), o medo de desemprego entre os brasileiros subiu 2,3 pontos em relação a abril deste ano – quando a confederação fez o último levantamento desse tipo. A pesquisa foi feita com mais de 2 mil pessoas em 126 municípios. Segundo a pesquisa, o medo é maior quando a pessoa tem um nível menor de escolaridade.
Reconhecimento
O projeto será apresentado nos EUA em 2 de abril de 2020, em evento promovido pelo MIT Brazil, Todos pela Educação e FGV (Fundação Getúlio Vargas). Um dos principais objetivos da viagem é conseguir dar visibilidade a projetos como o Quero Trampo junto de futuros apoiadores e acadêmicos.
O Quero Trampo foi um dos quatro projetos de oito iniciativas criadas durante o curso intensivo de um mês que tinha como objetivo reunir jovens de diferentes origens sociais e criar soluções para uma comunidade específica – nesta edição, o local escolhido foi Paraisópolis.
“Queremos estourar as bolhas sociais, porque mais do que resolver esses problemas, buscamos compreender a realidade do outro. Não julgar. Tirar aquele preconceito da nossa criação, das redes sociais, e mostrar que em um ambiente multidiverso se pode realmente resolver problemas”, explica Juliana Mitkiewicz, professora do Insper.
Para selecionar os alunos premiados com a viagem, a professora explica que, diferente do padrão baseado no critério de avaliação em notas, ela observou quem eram os estudantes que se empenhavam mais em levar as ideias para frente mesmo após o curso ter terminado. No final, foram 9 de 57 alunos que ganharam a viagem.
Rede de Apoio
Flávia podia dar o título a esta reportagem com as seguintes palavras: “Moradora da segunda maior favela de São Paulo, jovem de 13 irmãos que já passou fome e morou de favor ganha viagem ao MIT”. Porém, Flávia é mais do que tudo isso. A luta dela para melhorar o ambiente que vive não é recente.
Aos 21, ela já carrega um currículo extenso. Coordenadora do Festival da Juventude, Educadora Social e Organizadora da Mostra Cultural de Paraisópolis, Flávia afirma que o engajamento em iniciativas de impacto e o trabalho dentro da Associação dos Moradores de Paraisópolis mudaram a sua vida.
Porém, outro fator primordial que a estudante destaca é o nome da professora de português, dona Cida. No colégio, mesmo quando queria se dedicar aos estudos, Flávia era barrada por alguma dificuldade. Muitas vezes a jovem tinha que faltar na escola, fosse pela falta de tempo, para cuidar dos irmãos ou pelo cansaço provocado pelas horas trabalhadas no mercadinho e no restaurante do bairro. Flávia trabalhava de segunda a segunda.
Mesmo assim, ela lembra que a professora Cida decidiu apostar no seu potencial e a inscreveu em um concurso de redação. “Eu só participei por participar. Nem pensava no prêmio, não achei que ia rolar”, lembra Flávia, que foi uma das vencedoras do concurso – à época, valeu uma viagem ao litoral paulista. “Isso mudou a minha vida, porque comecei a acreditar mais em mim”, conta Flávia.
“Sem uma Cida, Francisca, Júlia na minha vida eu não teria essa chave de virada. Não é fácil você não ter apoio familiar e tantos problemas e conseguir saber o que quer fazer. Mas, eu sempre tive essas pessoas de fora que sempre me apoiaram”, afirma.
Como ajudar
Ainda com a viagem realizada em 2017 para Santos forte na memória, Flávia agora vai para mais longe. O bônus? A aventura dessa vez vai ter um frio na barriga: subir em um avião pela primeira vez.
Porém, nessa primeira edição, a viagem de premiação apoiada financeiramente em parceria com o Insper e o MIT Brazil vai custear a passagem, vistos e acomodação dos estudantes. A alimentação fica por conta dos estudantes. Sem condições de arcar sozinha com o custo, Flávia começou um financiamento coletivo para realizar esse sonho. A jovem pede o valor de R$ 10,000 (a ideia é arrecadar cerca de R$2.400,00) para ajudá-la durante o período de dez dias de viagem.
“Isso tudo está sendo muito além do que imaginei. Eu, moradora de Paraisópolis, com tanto preconceito, nunca imaginei que estaria indo para os Estados Unidos representando a minha comunidade. Sou muito grata a todo o apoio. A cada centavo que conseguir arrecadar serei grata. Porque tudo isso é só o início”, desabafa Flávia.”Eu só quero é poder ajudar a minha comunidade”, completa.
Fonte: Débora Komukai De Ecoa – Uol